Desmentindo o “Panorama Histórico da Palestina” da TV
Cultura
1. Desmentindo o “Panorama Histórico da Palestina” da TV
Cultura.
No dia 13 de dezembro, o Jornal
da Cultura trouxe a professora Arlene Clemesha para explicar 4 mapas
da antiga Palestina/Israel que o programa chamou de “Panorama Histórico da
Palestina”. Segundo o apresentador Willian Corrêa, era preciso voltar a 1946
para “explicar melhor o que está acontecendo em Israel” agora, com a decisão de
Trump sobre Jerusalém:
2. Mostrados no telejornal, são os mesmos que aparecem no
famoso e falso mapa da “perda de terra palestina” de 1946 até a atualidade.
Coincidentemente, os mapas acima,
mostrados no telejornal, são os mesmos que aparecem no famoso e falso mapa da
“perda de terra palestina” de 1946 até a atualidade, com legendas levemente
modificadas de “terras judaicas” para “Israel”, e o último mapa podendo
representar qualquer ano desde 2000.
3. O discurso da perda progressiva de territórios por parte
dos palestinos usando o mapa acima, ficou conhecido em 2010, quando Juan Cole.
O discurso da perda progressiva de
territórios por parte dos palestinos usando o mapa acima, ficou conhecido em
2010, quando Juan
Cole, um blogueiro anti-Israel e professor de história, começou a
divulgá-lo em diversos artigos. Mas vamos ao que Clemesha diz sobre os
mapas.
1o mapa:
4. O primeiro mapa mostra terras pertencentes à “Israel”, em
amarelo, e terras à “Palestina” em verde, em 1946.
Clemesha diz:
“Esse primeiro
mapa mostra em amarelo, as colônias israelenses, ainda sionistas do movimento
sionista judaico que trouxe colonos, trouxe imigrantes da Europa pra Palestina.
Então foram formando pontos de assentamento no território… Até 46 havia essa
realidade.”
Em primeiro lugar, as legendas dos
mapas são erradas, pois até 1948 não havia o Estado de Israel ainda.
Judeus e árabes viviam na Palestina. Os judeus eram chamados de
palestinos, e os árabes eram tidos como uma mistura de jordanianos, sírios e
libaneses. Colocar Israel versus Palestina implica que havia um
“Estado” da Palestina que foi depois tomado por Israel, quando na verdade os
territórios são os mesmos, apenas o seu nome mudou, como fizeram os romanos
quando trocaram o “Judéia” por “Syria Phalaestina”.
Em segundo lugar, este mapa não tem
absolutamente nada a ver com a localização de judeus e árabes na Palestina em
1946. As partes amarelas são propriedades privadas de judeus
(compradas) e as partes verdes são uma mistura de propriedades privadas árabes com
áreas públicas controladas pelos britânicos (que constituíam pelo menos 50% de
todo o território, incluindo o inabitado deserto do Negev). Judeus e árabes
viviam em ambas as “cores”, em terras privadas e públicas.
O mapa apresenta uma divisão que
passa a ideia de um território governado por árabes e não por britânicos. Seria
possível também desenhar um mapa dos árabes versus a
Palestina, combinando a terra privada judaica com as terras do governo sob o
nome de Palestina. Assim, pareceria que os judeus possuiriam a maior parte da
terra na época.
E um último ponto, Clemesha fala em
“assentamentos” judaicos na Palestina, passando a ideia de ocupação ilegal
(como existe hoje), sem mencionar que árabes provenientes de outros países
também formaram assentamentos árabes na Palestina. As terras em amarelo
foram compradas por judeus diretamente dos otomanos desde a 1a metade
do século XIX.
2o mapa:
5.
O segundo mapa apenas mostra o plano de partilha da ONU, de 1947, que foi
rejeitado por toda a Liga Árabe e, portanto, nunca entrou em vigor.
Clemesha diz:
“Em 47, a
ONU votou a partilha da Palestina na medida em que existia um conflito na
região. Votou-se a partilha, o território verde, designado pra criação de um
Estado árabe-palestino, e o território amarelo, designado pra criação de um
Estado judeu, e Jerusalém seria uma zona administrada pela ONU, pela
importância pras três religiões monoteístas.”
Clemesha passa uma informação FALSA ao falar em Estado
árabe-palestino. Naquela época, não existia o conceito de “palestino” atrelado
somente a árabes. A ONU nunca falou em Estado árabe-palestino ou Estado
palestino, apenas em Estado árabe. Vejam esta passagem da Resolução 181, e
entendam que judeus e árabes eram tidos como palestinos, residentes da Palestina:
(ONU) Resolução 181: 1. “Cidadania. Cidadãos palestinos residindo na
Palestina fora da cidade de Jerusalém, bem como árabes e judeus que, sem
cidadania palestina, residem na Palestina fora da cidade de Jerusalém, devem,
após o reconhecimento da independência, tornarem-se cidadãos do Estado em que
residem e desfrutar de plenos direitos civis e políticos.”
O Plano de Partilha ganhou
a forma que ganhou porque as cidades e aldeias judaicas estavam
espalhadas por toda a Palestina e seu alto padrão de vida atraiu grandes
porções de população árabe. Reconhecendo que o Estado judaico precisaria
abrigar a maioria da população da Palestina (a maioria dos judeus e parte dos
árabes), a partilha alocou 54% do território para isso. O restante formaria o
Estado árabe. Os limites foram baseados exclusivamente em dados
demográficos: O Estado judeu deveria ser composto por 538.000 judeus e 397.000
árabes, e o Estado árabe por 804.000 árabes e 10.000 judeus.
Sobre Jerusalém
internacionalizada, Willian comenta:
“Mas isso
não aconteceu… só no papel. Quem administrou mesmo foi Israel.”
Clemesha dá a sua explicação:
“Claro, porque
em seguida, final de 47 começa uma guerra civil. Em 48, começa a guerra
árabe-israelense. Com essa guerra Israel expandiu seu território pra todo
esse amarelo. Então isso aqui nunca saiu do papel, o que aconteceu foi essa
realidade em que o recém-criado, Israel se funda nesse momento conquistando 78%
do território da Palestina histórica. E jerusalém ficou exatamente aqui,
dividida ao meio.”
Quantas informações cruciais
Clemesha pode esconder para fazer parecer que Israel simplesmente contrariou o
Plano da ONU e tomou não só Jerusalém como a “maioria” da Palestina para si e
sem motivos?
Israel não se fundou após a guerra,
com a conquista de territórios, mas antes e respeitando as fronteiras do
Plano de Partilha (ou seja, Jerusalém internacionalizada). E a guerra
árabe-israelense não começou do nada. No dia seguinte à declaração de
independência, o novo país foi atacado pelo Egito, Síria, Iraque,
Transjordânia, Líbano e Arábia Saudita.
No final, apesar da desvantagem em
números e em armas, Israel ganha a guerra e conquista territórios em uma guerra
defensiva, incluindo Jerusalém.
Clemesha:
“A Jordânia que
veio ao socorro dos palestinos, estacionou suas tropas e conseguiu defender
Jerusalém oriental, onde tá a Cidade Velha, onde estão os monumentos
históricos. Então a Jordânia ficou com Jerusalém oriental, administrando ela em
nome dos palestinos, a quem pertence os territórios historicamente, e Jerusalém
ocidental israelense.”
FALSAS. Clemesha passa apenas
informações FALSAS. A Jordânia (na época ainda Transjordânia) não atacou Israel
nem para socorrer palestinos nem para defender Jerusalém oriental, ou Jerusalém
inteira. Assim como os outros países árabes, a Jordânia atacou Israel após a
sua fundação com o intuito de exterminar os judeus e seu país como um todo.
Jamal Husseini, o porta-voz da Liga
Árabe, já havia dito à ONU antes da partilha, que os árabes molhariam
“o solo de nosso amado país com a última gota de nosso sangue.” Após os
países árabes atacarem Israel, Abd al-Rahman Azzam Pasha, secretário-geral
da Liga Árabe afirmou: “Será uma guerra de aniquilação. Será um importante
massacre na história que será lembrado como os Massacres dos Mongóis ou as
Cruzadas”.
A Jordânia não “defendeu” Jerusalém
oriental, ela apenas estava parada no meio da cidade quando houve um
cessar-fogo e posterior assinatura dos Acordos de Armistício em 1949.
Os acordos declararam que Israel e Jordânia dividiriam geograficamente
Jerusalém, por tempo provisório (sem constituir fronteiras políticas ou
territoriais), e trabalhariam juntos para o reinício do funcionamento de
instituições, acesso ao cemitério judaico no Monte das Oliveiras (onde os
judeus enterraram seus falecidos por mais de 2.500 anos), e lugares sagrados.
Mas a Jordânia violou o acordo,
e bloqueou e isolou o leste de Jerusalém com arame farpado e muros de
concreto. Os judeus que ali viviam foram mortos ou expulsos, e o acesso aos
locais sagrados foi negado a toda a população do lado israelense (inclusive
árabes), contrariando os termos do armistício.
Se o intuito da Jordânia era
administrar a região em nome dos “palestinos” e se esses “palestinos” tinham
direito à região, como afirma Clemesha, por que a Jordânia proibiu que os
árabes do lado de fora das linhas do armistício entrassem em Jerusalém
oriental e Cisjordânia? Porque o intuito da Jordânia não era proteger os árabes
da Palestina ou seus direitos – vide a falta de interesse em criar um Estado
para eles quando justamente as terras estavam sob controle árabe -, mas manter
um estado de guerra com Israel.
3o mapa:
6. O terceiro mapa mostraria a região após a primeira guerra
Árabe-Israelense, colocando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza sob soberania
palestina até 1967. Isto nunca ocorreu, pois neste período Jordânia e Egito
tomaram o controle militar destas regiões.
Clemesha continua:
“A ONU
reconheceu exatamente isso, essa divisão de Jerusalém entre árabes-palestinos e
israelenses nesse momento porque houve um armistício em 49, e a situação
concreta ficou como sendo essa.”
A ONU não reconheceu especificamente
soberanias sobre Jerusalém, mas apenas supervisionou o acordo entre os dois
países e aceitou as linhas de armistício.
Willian:
“E agora vem o
Trump...”
Aqui Willian faz parecer que Trump
veio para desfazer à força um acordo feito em 1949… Mas eis que falta comentar
sobre a Guerra de 1967, o que Clemesha não consegue fazer de forma ética e
profissional.
Clemesha:
“Porque em 67,
o que aconteceu foi que Israel invadiu a Cisjordânia, toda essa parte, a Faixa
de Gaza, as Colinas do Golã da Síria, e também o Sinai que já foi devolvido pro
Egito… Invadiu essas regiões e manteve essa ocupação da Faixa de Gaza,
Cisjordânia, Sinai… e Jerusalém leste, árabe-palestino, foi não só ocupada como
anexada.”
Não, Israel não invadiu a
Cisjordânia ou as outras partes. Israel tomou estas terras em um ato defensivo,
incluindo Jerusalém leste jordaniano.
Em 1967, as nações
árabes tentaram eliminar Israel novamente: desta vez a guerra começou com
uma escalada complexa que incluiu um casus belli inicial (atos de guerra) pelo
Egito e um ataque preventivo de Israel contra a força aérea egípcia. No
entanto, o objetivo das nações árabes combatentes (Egito, Jordânia, Síria) e
das outras nações que apoiavam a campanha (Iraque, Kuwait, Arábia Saudita e
Argélia) foi o mesmo que em 1948: a destruição total de Israel.
A Jordânia resolveu se juntar ao
Egito na guerra contra Israel, apesar de Israel emitir um comunicado claro
dizendo que não atacaria aquele lado se a Jordânia ficasse de fora. Mas o
descaso do país árabe seguido de intenso bombardeio de alvos israelenses levou
à entrada de Israel na Cisjordânia e parte oriental de Jerusalém, derrubando as
barreiras e reunificando a cidade.
Israel declarou a anexação de
Jerusalém oriental, declarou que jamais devolveria Jerusalém oriental, e essa
anexação não foi reconhecida pela ONU. Essa anexação foi considerada ilegal
pela ONU, e na medida em que foi assim, nenhum país no mundo mantém sua
embaixada em Jerusalém pra não reconhecer um ato que é tido como ilegal pela
comunidade internacional, pela lei internacional.
A ONU não reconheceu a anexação de
Jerusalém oriental em 1980, mas antes disso, ao fim da Guerra de 1967, a ONU
emitiu a Resolução 242, que exigiu essencialmente duas coisas:
· a
retirada israelense dos “territórios ocupados”.
· que
todos os Estados envolvidos terminassem a sua beligerância e respeitassem as
fronteiras uns dos outros.
O contexto da resolução deixou claro
que a “retirada de territórios” não significava todos os
territórios, mas retirada apenas na medida em que fosse necessário criar uma
situação segura para todas as partes. Israel aceitou a resolução. A Organização
de Libertação da Palestina (recém-criada) rejeitou a resolução e os
Estados árabes retomaram suas tentativas de aniquilar Israel pouco depois, mais
dramaticamente, na Guerra de Yom Kippur de 1973.
4o Mapa” (HOJE):
7. Quarto
mapa: (Hoje)
Willian:
“E aí o Trump
vem agora e muda, ou pelo menos reconhece Jerusalém como a capital…
…Nenhum
problema haveria se, havendo um acordo de paz, Israel declarasse Jerusalém
ocidental a sua capital, e a Palestina pudesse declarar Jerusalém oriental a
sua capital. Nenhum problema, porque afinal de contas essa cidade foi dividida
e esse status foi reconhecido.
O problema é
que como existe um ato de posse forçosa, ou seja, como existe um ato de
conquista de Israel de uma metade que não é dela, então não se aceita que ela
declare essa capital, essa cidade unificada como sendo a sua capital toda
ela. (…)”
Se algum lado tomou posse
forçosamente, este lado foi a Jordânia em 1948. Israel conquistou terras em
atos defensivos tanto em 1948, quanto em 1967, em guerras que ela não começou.
O quarto e último mapa mostraria a
situação hoje como tendo resquícios da ocupação israelense em territórios da
Palestina desde 1967. Na realidade, na Cisjordânia, as áreas verdes são as
controladas pela Autoridade Palestina, e as que mudaram de verde para amarelo
não são somente assentamentos israelenses, mas também áreas onde Israel mantém
controle de segurança segundo acordos prévios.
As pequenas áreas verdes foram as
primeiras a serem concedidas para um autogoverno verdadeiramente palestino, por
Israel diretamente a Yasser Arafat e seus sucessores.
.
Display em ônibus na cidade de Vancouver.
Estes mapas são amplamente
utilizados até os dias de hoje em campanhas pró-palestinas. O discurso da
perda territorial palestina abordada desta maneira confere ao último mapa um
contexto deturpado, embora carregue uma representação precisa das soberanias
israelense e palestina. Os três primeiros mapas foram intencionalmente
organizados para passar a imagem de uma expropriação progressiva de terras
palestinas por parte dos judeus e, posteriormente, Israel, ignorando governos,
guerras e tomada de controle de terras ocorridos na história anteriormente.
A disseminação desses mapas ajuda
somente a estabelecer a hegemonia da imagem dos palestinos como única vítima da
história.
É vergonhoso que um veículo de
notícias como o Jornal da Cultura utilize estes mapas, e ainda convide uma
professora completamente parcial para explicar um assunto tão complexo. O
público merece muito mais ética e profissionalismo de jornalistas.
FIM
Fig. 1 – Site da Clemesha
– fora do ar: https://sites.google.com/site/arleneclemesha/livros-e-artigos-1
Fig. 2 - Clemesha.2: http://icarabe.provisorio.ws/artigos/israel-nao-respeita-direitos-do-povo-palestino
Fontes:
Arlene Elizabeth
Clemesha (Guaratinguetá, 18 de dezembro de 1972 ) é uma historiadora brasileira,
professora de História Árabe do Departamento de Letras Orientais da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP)
e atual diretora do Centro de Estudos Árabes da USP.
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