terça-feira, 29 de agosto de 2017

“Apropriação Cultural!

Como reflexão está valendo. O nosso Português é uma colcha de retalhos idiomática. (PauloGeo)

“Apropriação Cultural!
-Bom dia. Sou o oficial de justiça, e vim cumprir um mandado de desapropriação.
-Desapropriação? A prefeitura quer desapropriar o quê?
-Não é a prefeitura, são os movimentos sociais. Trata-se de uma desapropriação cultural. O senhor se declarou afrodescendentes, não?
-Sim, mas vir me tomar alguma coisa porque sou negro é racismo!
-O senhor está falando Português. É uma apropriação cultural dos brancos. Se souber a origem dos seus antepassados, pode optar por falar Fulfude, Wolofe, Mandinga, Iorubá, Huaçá, Quicongo, Quimbundo etc. Acho que se o senhor se apropriar de algo da cultura de outro afrodescendente não é crime. Mas se falar Português...
-Como é que eu...?
-Se insistir em continuar, terei que mandar prendê-lo. Até porque o senhor está usando terno, que é uma apropriação cultural francesa; uma camisa, que é apropriação cultural romana; gravata, que é uma apropriação cultural croata e sapatos de couro, que são apropriação cultural mesopotâmica.
-E eu vou ficar pelado?
-Ficar pelado seria apropriação cultural indígena. O senhor pode usar tanga, que é apropriação cultural pré-histórica, e não há mais neandertais (pelo menos não assumidamente) dispostos a reaver esse poderoso símbolo de sua luta. Vou incluir uma multa por sua pergunta em Português, uma língua que não lhe pertence.
-E preciso que me entregue os óculos também. São apropriação cultural alemã. E o relógio de pulso, que é apropriação cultural francesa.
-Não foi um brasileiro quem inventou?
-Não, o Santos Dumont só disse que precisava de um relógio no pulso, e aí um francês inventou. Ele, possivelmente, não queria mais usar relógio de algibeira porque a própria algibeira seria uma apropriação cultural árabe.
-Quanto tempo eu tenho para aprender outra língua e conseguir um habeas corpus para entrar descalço e de bubu, djellabah ou abadá, no Fórum, onde eu trabalho?
-Aqui no mandado diz que a desapropriação e execração nas redes sociais ocorrem de imediato, mas como o senhor é advogado, antes tenho que incluir a desapropriação cultural de termos latinos, também.

(Uma mulher se aproxima)

-Oi, querido, vem almoçar. O bobó está esfriando.
-A senhora é a esposa?
-Sim, o que é que está acontecendo?
-Como a senhora é branca, não está autorizada a comer o bobó. Nem a usar esse brinco de argola. Muito menos o rímel. São apropriações culturais africanas, e, no caso do rímel, africana e egípcia, cumulativamente.

(Lá de dentro alguém grita)

-Mãe! Pai! Venham almoçar...
-Sua filha é (desculpem, não posso usar a palavra mulata), ela é... de origem étnica mista?
-Sim, claro. Eu sou a mãe, ele é o pai.
-Bem, então ela pode pintar um dos olhos, colocar um brinco de argola (ou dois brincos de meia argola), comer metade do bobó e usar uma palavra em Português, outra não, uma em Português, outra não.
-Ok.
-Ok não pode. É apropriação cultural estadunidense.

(A menina chega até a porta)

-Pai, mãe, vocês vêm ou não vêm? Assim vou me atrasar pro judô e pra ioga.
-Atenção, todos os carros! Jovem de etnia mista, portando apropriação cultural tribal maori no ombro esquerdo, a caminho de apropriações culturais japonesa e hindu. Elemento usa cabelo verde, apropriação cultural possivelmente marciana, que não consta da minha tabela. Mandem reforços!”
(Eduardo Affonso)

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