Como reflexão está valendo. O nosso Português é uma colcha
de retalhos idiomática. (PauloGeo)
“Apropriação Cultural!
-Bom dia. Sou o oficial de justiça, e vim cumprir um mandado
de desapropriação.
-Desapropriação? A prefeitura quer desapropriar o quê?
-Não é a prefeitura, são os movimentos sociais. Trata-se de
uma desapropriação cultural. O senhor se declarou afrodescendentes, não?
-Sim, mas vir me tomar alguma coisa porque sou negro é
racismo!
-O senhor está falando Português. É uma apropriação cultural
dos brancos. Se souber a origem dos seus antepassados, pode optar por falar
Fulfude, Wolofe, Mandinga, Iorubá, Huaçá, Quicongo, Quimbundo etc. Acho que se
o senhor se apropriar de algo da cultura de outro afrodescendente não é crime.
Mas se falar Português...
-Como é que eu...?
-Se insistir em continuar, terei que mandar prendê-lo. Até
porque o senhor está usando terno, que é uma apropriação cultural francesa; uma
camisa, que é apropriação cultural romana; gravata, que é uma apropriação
cultural croata e sapatos de couro, que são apropriação cultural mesopotâmica.
-E eu vou ficar pelado?
-Ficar pelado seria apropriação cultural indígena. O senhor
pode usar tanga, que é apropriação cultural pré-histórica, e não há mais
neandertais (pelo menos não assumidamente) dispostos a reaver esse poderoso
símbolo de sua luta. Vou incluir uma multa por sua pergunta em Português, uma
língua que não lhe pertence.
-E preciso que me entregue os óculos também. São apropriação
cultural alemã. E o relógio de pulso, que é apropriação cultural francesa.
-Não foi um brasileiro quem inventou?
-Não, o Santos Dumont só disse que precisava de um relógio
no pulso, e aí um francês inventou. Ele, possivelmente, não queria mais usar
relógio de algibeira porque a própria algibeira seria uma apropriação cultural
árabe.
-Quanto tempo eu tenho para aprender outra língua e
conseguir um habeas corpus para entrar descalço e de bubu, djellabah ou abadá,
no Fórum, onde eu trabalho?
-Aqui no mandado diz que a desapropriação e execração nas
redes sociais ocorrem de imediato, mas como o senhor é advogado, antes tenho
que incluir a desapropriação cultural de termos latinos, também.
(Uma mulher se aproxima)
-Oi, querido, vem almoçar. O bobó está esfriando.
-A senhora é a esposa?
-Sim, o que é que está acontecendo?
-Como a senhora é branca, não está autorizada a comer o
bobó. Nem a usar esse brinco de argola. Muito menos o rímel. São apropriações
culturais africanas, e, no caso do rímel, africana e egípcia, cumulativamente.
(Lá de dentro alguém grita)
-Mãe! Pai! Venham almoçar...
-Sua filha é (desculpem, não posso usar a palavra mulata),
ela é... de origem étnica mista?
-Sim, claro. Eu sou a mãe, ele é o pai.
-Bem, então ela pode pintar um dos olhos, colocar um brinco
de argola (ou dois brincos de meia argola), comer metade do bobó e usar uma
palavra em Português, outra não, uma em Português, outra não.
-Ok.
-Ok não pode. É apropriação cultural estadunidense.
(A menina chega até a porta)
-Pai, mãe, vocês vêm ou não vêm? Assim vou me atrasar pro
judô e pra ioga.
-Atenção, todos os carros! Jovem de etnia mista, portando
apropriação cultural tribal maori no ombro esquerdo, a caminho de apropriações
culturais japonesa e hindu. Elemento usa cabelo verde, apropriação cultural
possivelmente marciana, que não consta da minha tabela. Mandem reforços!”
(Eduardo
Affonso)
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